
Ouvimos todos os dias, mas não custa repetir: empreender no Brasil, definitivamente, não é para amadores. Ao contrário, ao contrário – e muito além disso: é preciso ter um pouco de herói, um pouco de louco, bastante coragem e muita, muita paciência. E se isso tudo é verdade de maneira geral, as premissas multiplicam-se exponencialmente quando o assunto é mercado imobiliário.
Por um lado, a parte privada do negócio já traz desafios complexos para mil vidas empresariais: da localização de terrenos até os processos de aquisição, com seus intermináveis checklists de documentação para mitigar e mapear passivos do imóvel e dos vendedores; das regras de incorporação até os labirintos de uma tributação a cada dia mais brutal (que nos desculpem os defensores da suposta reforma neutra); da estruturação de mecanismos de financiamento até a oferta das unidades a mercado, com o ajuste de compromissos de venda e compra que amarrem cada detalhe em hipóteses de reajuste, atualizações monetárias e casos de rescisão, considerando ainda os entendimentos judiciais mais recentes e que muitas vezes colocam em xeque a força vinculante de cláusulas mais claras e transparentes do que a água de praias caribenhas em dia de sol – efetivamente, não se trata de um piquenique no parque.
Tudo isso já seria mesmo complicação suficiente, mas a verdade é que os desafios não ficam apenas na esfera privada. The plot thickens, como diriam os ingleses de um outro tempo: afinal, poucas áreas dependem tanto de uma interface relacional jurídica com o Poder Público quanto o mercado imobiliário – o que traz um universo todo de desdobramentos muito específicos.
E a questão vai bem além das muito óbvias – mas na prática nada óbvias – dificuldades das licenças urbanísticas, seja em razão dos entraves procedimentais e a demora administrativa, seja ainda quanto à necessidade de entendimento técnico (com regras mais obscuras do que teses de doutorado de filósofos alemães) sobre recuos, gabaritos, taxas de permeabilidade, quotas ambientais, cotas-partes mínimas e máximas, coeficientes de aproveitamento variáveis, o pagamento de outorgas onerosas reguladas em formalidades e formalismos estritíssimos, a caracterização, ou não, de áreas como computáveis, e, last but not least, as famosas vagas de garagem, que, a depender da pauta do dia, viram vilãs (“precisamos desincentivar o uso de automóveis”) ou heroínas (“devemos garantir estacionamento infinito aos clientes do seu shopping”).
Mas, de fato, as licenças edilícias são só a superfície (embora superfície relevantíssima) em um panorama regulatório que exige demais essa interface junto à Administração Pública, como nas hipóteses e consequências jurídicas de relatórios de impacto de vizinhança, certidões de diretrizes viárias e demais regras da legislação de uso e ocupação do solo, com suas inúmeras exigências de: parcelamentos compulsórios, compensações ambientais, contrapartidas urbanísticas que muitas vezes envolvem doações de áreas de calçada, a produção de habitações de interesse social, a implementação de áreas para fruição pública, ou ainda a construção de equipamentos de infraestrutura e elementos de viário como mitigação da geração de tráfego do empreendimento.
E isso sem contar a sempre presente possibilidade de processos de tombamento (a nova moda é buscar tombar bairros inteiros) ou a aprovação de planos urbanos específicos (Planos de Intervenção Urbana e Operações Urbanas Consorciadas) para a região do empreendimento, com o potencial explosivo de alterações de parâmetros urbanísticos incidentes e regras de transição muitas vezes lacunosas e obscuras.
Mas, convenhamos, nem só dificuldades, também o copo meio-cheio de inúmeros benefícios urbanísticos previstos pelo legislador para induzir condutas desejadas, e cuja utilização adequada pode fazer a diferença entre o sucesso e o fracasso de um projeto – ou ao menos alavancar o retorno financeiro dos produtos: fachadas ativas, usos mistos, transferências do potencial construtivo de imóveis tombados ou mesmo doados à Administração, a aquisição desse mesmo potencial como alternativa às outorgas oficiais das Prefeituras; retrofits em regiões degradadas; explorações econômicas alternativas e acessórias; produção de habitação de interesse social; implementação de praças urbanas; coeficientes incentivados; cota de solidariedade voluntária; edificações sustentáveis – e a lista segue, impulsionada adiante numa inevitável interface com o Poder Público.
E nesse contexto todo, entre direitos concedidos e às vezes retirados no raiar do dia de novas gestões políticas, as contradições entre emaranhados hierárquicos de leis, decretos, resoluções, portarias, instruções normativas e até mesmo pareceres vinculantes de procuradorias, além da fiscalização dos órgãos de controle e de associações de moradores ativíssimas, a verdade é que, infelizmente, o chamado “direito imobiliário raiz” não tem todas ferramentas necessárias para navegar a complexidade que as situações exigem.
Esse papel é hoje do direito urbanístico, uma especialidade que une as áreas de direito ambiental e administrativo ao imobiliário privado, e que, talvez diante das nossas peculiaridades regulatórias e político-legislativas, encontra seu campo mais fértil no Brasil. De fato, não deixa de ser curioso perceber que os rankings jurídicos internacionais mais importantes nem sequer listam a categoria em suas análises extremamente segmentadas e específicas.
De toda forma – e independentemente disso –, listado ou não nos rankings estelares, o direito urbanístico passou a ser a necessidade incontornável, GPS de navegação e verdadeira questão de sobrevivência numa atividade que transita necessariamente entre o público e o privado, em cidades onde o solo é urbano, mas os desafios são sempre, sempre, selvagens.
Por: Rodrigo Duarte Garcia, sócio do Duarte Garcia, Serra Netto e Terra, na área de Direito da Infraestrutura & Gabriela Braz Aidar, sócia do Duarte Garcia, Serra Netto e Terra, na área de Direito Urbanístico.