
O campo de políticas públicas avançou desde sua consolidação na década de 1950. A definição de conceitos cada vez mais específicos e a incorporação de ferramentas da fronteira do conhecimento da econometria respondem por esse avanço. No entanto, um adágio de Liev Tolstói permanece válido: tudo depende do acaso! A econometria considera que a aleatoriedade é uma força de difícil domínio. Portanto, apesar dos avanços em todas as áreas do ciclo de políticas públicas, em especial na avaliação, a percepção popular dos resultados ainda desempenha um papel crítico.
Frequentemente, há um descompasso entre os impactos mensurados e a dificuldade e/ou resistência de parte da população em reconhecer os resultados. Essa resistência já estava devidamente registrada antes da segunda metade da década de 2010, após esse período a desconfiança política e a polarização são fatos que motivam diferentes estudos. Mais do que isso, são características conjunturais que podem potencializar a resistência a determinadas políticas públicas.
Esse preambulo é necessário para diversas políticas públicas setoriais, especialmente em políticas de transferência condicionada de renda, pois essa é, possivelmente, a ação estatal em que há mais oposição entre resultados gerados e percepção popular.
A má percepção popular motiva diferentes estratégias de pesquisa. No contexto nacional, um exemplo é o artigo “Bolsa Família: um survey sobre os efeitos do programa de transferência de renda condicionada no Brasil”, publicado em 2017 no volume 4 do periódico científico “Estudos Econômicos”. O estudo confronta as percepções com os efeitos positivos do programa em áreas como focalização, alimentação e educação. Em âmbito internacional, um paralelo ilustrativo é o artigo “Myth Bust? Confronting Six Common Perceptions about Unconditional Cash Transfers as a Poverty Reduction Strategy in Africa”, publicado pelo “The World Bank Research Observer” no segundo volume de 2018. Os resultados sistematizados nesse artigo refutam as percepções de falhas das políticas de enfrentamento à pobreza.
No entanto, ao mesmo tempo em que as avaliações detectavam resultados positivos, as pesquisas sobre o Bolsa Família capturavam percepções negativas, sobretudo na parcela de amostra dos não beneficiários. Em 2009, o artigo “Percepções sobre o Programa Bolsa Família na sociedade brasileira”, publicado no volume 2 do periódico científico “Opinião Pública” parecia dar a batalha por vencida: a sociedade brasileira reconhecia o mérito do programa, ainda que com diferenças entre quem conheça beneficiários e quem não conheça. Assunto encerrado, como diria Ítalo Calvino? Não! A passagem do tempo é melhor descria pela canção de Nelson Ned: “mas tudo passa, tudo passará, e nada fica, nada ficará!”. Ou seja, o entendimento sobre o papel do Bolsa Família mudou para parte significativa da sociedade brasileira. Em 2015, o livro da pesquisadora Lena Lavinas, “Percepções sobre desigualdade brasileira: o que pensam os brasileiros da política social?”, sistematizou percepções extremamente negativas sobre o Programa e sobre os beneficiários do Bolsa Família, em especial, na percepção quanto à dependência e indisposição ao trabalho.
Os parágrafos anteriores permitem a seguinte conclusão: no período histórico de consolidação de resultados positivos do Bolsa Família a percepção negativa ampliou-se, em especial, entre os não beneficiários. Há explicações consolidadas? Não! No entanto, o livro “Os Batalhadores Brasileiros”, escrito por Jessé Souza em 2010, permite trabalhar com de hipótese de hipervalorização do esforço individual nas classes mais pobres. Retomando a conclusão anterior e combinando-a com a hipótese do esforço ouso expor ao leitor uma preocupação desse texto: no melhor interesse da manutenção da política de renda é desejável não dar instrumentos para que a percepção negativa se amplie.
A pesquisa de Duque
No dia 12 de agosto de 2025, o jornal “Valor Econômico” publicou matéria divulgando novos resultados sobre o Bolsa Família. Segundo o diário, o aumento do Bolsa Família em 2022 (R$190 para R$ 670) gerou efeitos negativos sobre a oferta de trabalho – tendência que não se observava anteriormente. O conteúdo da reportagem se fundamentou em pesquisa realizada por Daniel Duque, entrevista com o responsável pelo levantamento e repercussão do estudo com pesquisadores da Fundação Getulio Vargas. Em que pese o apelo da manchete do “Valor” (Bolsa Família mais amplo facilita saída da força de trabalho), o rigor científico e a necessidade de conter as reações intempestivas demandam prudência e aprofundamento analítico. Dito de outro modo, é melhor usar o bordão comum às mesas redondas pós-rodada do Brasileirão, em especial o alerta de comentaristas aos torcedores que temem pelo rebaixamento de sua equipe: “Torcedor, Calma!”
Os resultados da segunda metade da década de 2010 podem ser considerados consolidados, pois os estudos passaram por revisão sistemática por pares, utilizando o método de avaliação “duplo-cego”. Já o trabalho desenvolvido pelo pesquisador Daniel Duque é um Working Paper de 2024, ou seja, uma pesquisa em construção, que pode ser revisada por outros pesquisadores acadêmicos. Entendo que, para o leitor, esse pedido de calma pode soar como uma explicação a partir do erro do juiz ou pior, do Var. Então vamos buscar mais elementos para justificar o pedido de calma.
A pesquisa de Duque se fundamenta em dados da PNAD de 2021, utilizando a técnica de event-study, uma metodologia denominada quase-experimental dentro da econometria. As estimativas do estudo mostram que há efeitos negativos sobre a oferta de trabalho, que são predominantes na região Norte e Nordeste do Brasil. Além disso, a pesquisa evidencia uma influência mais marcante entre grupos demográficos específicos, incluindo jovens, mulheres e trabalhadores de baixa qualificação.
A metodologia quase-experimental se fundamenta na impossibilidade trabalhar com escolha aleatória entre o grupo afetado pela política e grupo controle. Por isso, os resultados da pesquisa serão tanto mais robustos quanto melhor forem definidos o grupo controle e os instrumentos (faixas etárias que compõem a PEA e ampliam os valores do benefício). No Working Paper de Daniel Duque essas duas variáveis estão ajustadas para isolar o efeito do Bolsa Família. Ou seja, mostrar que apenas o aumento da renda explica a diminuição da oferta de trabalho!
Além dos possíveis ajustes de pareceristas, os resultados do Daniel Duque estão sujeitos a uma condição crítica: a variação no perfil etário não pode estar correlacionada com a variação na oferta de trabalho por outros motivos, exceto o impacto da política. Dessa forma, memos que todo o desenho técnico da pesquisa tenha sido feito de forma zelosa, com o intuito de diminuir a influência comportamental, o estudo de Duque não desenvolve uma sessão completa sobre o instrumento, no qual revise os estudos sobre a relação entre dinâmica etária e a oferta de trabalho. A título de exemplo, o estudo precisaria incluir uma revisão das pesquisas sobre o grupo “Nem-Nem”, isto é, os fatores que determinam porque esses jovens nem trabalham e nem estudam. A correlação com faixa etária e características geracionais são evidentes e criam um problema a ser enfrentado pelo pesquisador da Fundação Getulio Vargas!
(Eu não havia pedido calma?)
Em sentido complementar, o pesquisador do IPEA Marcos Heckser assinou um texto para discussão (uma variação de Working Paper) sobre a relação entre o Bolsa Família e o emprego. Na sua revisão de literatura, breve, mas atual, Heckser apresenta estudos (que passaram pelo método “duplo-cego”) que mostram que o efeito negativo sobre oferta de trabalho, quando existe, é pontual e neutralizado pela própria dinâmica do mercado de trabalho, especificamente, pela combinação de uma pequena queda na oferta e ampliação da demanda por trabalho. Correndo o risco do velho argumento de autoridade, a revisão da literatura utilizada na pesquisa do IPEA também é ratificada pela ganhadora do Prêmio Nobel de Economia, Ester Duflo. Com base nos estudos referendados por Duflo, o pesquisador brasileiro opta por associar a queda na oferta de trabalho da população mais pobre (20% da menor renda nacional) com o baixo rendimento característico do mercado de trabalho.
Reconheço a postura reticente perante a possibilidade de mudança nos efeitos do Bolsa Família, no entanto, retomo o ponto central: na conjuntura atual, a polarização transcende a política partidária e as fronteiras nacionais. Nesse cenário, as posições antagônicas podem se apropriar de estudos iniciais para ratificar posicionamentos prévios, ou não aprendemos nada com Didier Raoult? A ampla repercussão de um Working Paper com potenciais efeitos negativos do Bolsa Família contribui mais para criticar a lógica da Assistência Social, isto é, consolidar e, no limite, ampliar percepções negativas do que para discussões técnicas e reformulações necessárias.
Por fim, é evidente que o estudo de Daniel Duque merece atenção e a repercussão que tem tido, mas é necessário retomar a constatação de Thomas Kuhn, o renomado filósofo da ciência: uma vez que um conceito (ou uma ideia) ganha força, quem o lançou perde o controle sobre a apropriação que outros farão dela.
Fábio Andrade é professor da ESPM, consultor ad hoc da FIA e doutor pela FGV.