O mês de outubro começa bem e termina com um grande susto para o governo.
O ganho de aprovação do governo vinha de antes, principalmente pela “resposta” nacionalista ao tarifaço americano, seguida da “química” observada entre os presidentes Trump e Lula. A perspectiva de um acordo parecia promissora.
Logo adiante, e em vista dos preparativos para as conversas que viriam a ocorrer na Ásia, o próprio Lula, em declarações no dia 15, trouxe um “upgrade” para essas expectativas ao ampliar o conceito da “química” para uma “petroquímica”.
No dia 1, a Câmara dos Deputados aprovou por unanimidade (493 votos a zero) o projeto de lei (PL1.087/25) prevendo a isenção de IR para rendas abaixo de R$ 5 mil. Por unanimidade.
Parecia tudo azul para o governo, considerando relações internas (parlamentares) e externas (com Trump).
O presidente da República faria sua primeira viagem internacional na semana começando no dia 20: o tão aguardado encontro com Donald Trump teria lugar na Malásia no dia 26/10, véspera do aniversário de 80 anos de Lula. Logo antes, no dia 23, na Indonésia, Lula anunciaria sua candidatura à reeleição em 2026.
Difícil imaginar que tudo isso não estivesse cuidadosamente coreografado.
Tudo seguiu como planejado, exceto por dois contratempos, o primeiro foi a derrota parlamentar no dia 7 e o segundo foi a operação policial no Rio de Janeiro no dia 29, encerrando o mês de forma abrupta e numa chave muito negativa para o governo federal.
Outubro termina com a contagem e identificação dos mortos no Rio de Janeiro e com uma mudança radical na temperatura e nos rumos do debate sobre segurança pública, sempre o tema mais importante e mais espaçoso nas pesquisas de opinião para a eleição que se aproxima.
O projeto dos cinco mil
O PL1.087/25 (isenção de IR para as rendas abaixo de 5 mil) começa seu trâmite de forma diferenciada, pois desde o início tratava-se de “promessa de campanha” do presidente Lula, medida prioritária a ser cuidada com carinho. A relatoria foi entregue para deputado Arthur Lira (PP-AL), para que seu relatório se transformasse numa demonstração de força e articulação do governo no Parlamento, numa espécie de apoteose.
O projeto dos cinco mil foi aprovado por unanimidade na Câmara, “um dia histórico”, segundo a ministra-chefe da Secretaria de Relações Institucionais da presidência da República, Gleisi Hoffmann.
Pouquíssimos temas que fazem sentido são aprovados assim. Na verdade, a unanimidade talvez fosse o exato sinal de que alguma coisa estava fora do lugar, como se veria logo a seguir.
As “compensações fiscais” para a renúncia fiscal determinada pela medida vinham sendo debatidas faz algum tempo. O governo havia feito a opção por não recorrer a cortes de despesas e pensava explorar alguma forma de taxação dos “super ricos”, com isso trazendo uma dimensão distributiva, portanto de esquerda, para o debate sobre o equilíbrio fiscal.
Seria realmente possível resolver o problema fiscal brasileiro simplesmente taxando adicionalmente os ricos e cobrando de quem não paga, conforme sugeria o ministro Haddad?
Seria fácil se houvesse uma solução simples e politicamente proveitosa, não?
A fórmula do PL1.087 é engenhosa, e permitia a conta segundo a qual haveria um aumento de imposto (um adicional no IR de até 10%) apenas para cerca de 140 mil pessoas com rendimento tributável acima de R$ 50 mil por mês (R$ 600 mil ao ano), os chamados “super ricos”, e que os recursos assim obtidos permitiriam o fim da cobrança de imposto de renda para mais de 10 milhões de brasileiros que ganham até R$ 5 mil por mês.
Quem poderia ser contra uma proposição como esta?
Uma pergunta difícil foi feita pelo professor Rogério Werneck, uma pergunta sobre a lógica orçamentária da medida, ou sobre escolhas: se é possível espremer mais R$ 30 bilhões adicionais de receita num cenário de penúria fiscal, por que subsidiar os trabalhadores que ganham entre R$3 e R$5 mil, um segmento relativamente favorecido da força de trabalho?
Segundo Werneck:
“Tais contribuintes, além de terem empregos formais, estão relativamente bem-posicionados na distribuição de renda. Não há por que isentá-los de IR. Não faz nenhum sentido o Brasil abrir mão de uma base ampla e maciça de contribuintes de IR, como se tem nas economias avançadas, e passar a restringir a cobrança do tributo aos parcos 15% da população ocupada que tem renda mensal acima de R$ 5 mil.”1
O apelo eleitoral da “promessa de campanha” não permitiu muita discussão. Assim como há impostos novos criados com destinação específica, há também o contrário: destinações específicas consideradas meritórias, que criam impostos novos para se viabilizar.
A correção da “defasagem” da tabela progressiva do IR – estimada pelo DIEESE em 154% – era uma aspiração antiga da classe média. O presidente percebeu a demanda e a converteu em promessa sua. O Congresso quis se apropriar de um pedaço da bondade: aumentou o benefício, como costuma fazer, e o aprovou por unanimidade (na Câmara), com fanfarra, trazendo uma impressão enganosa da real dimensão do apoio parlamentar do governo.
A medida seguiu para o Senado, onde encontrou a relatoria do também alagoano Renan Calheiros, um rival de Lira, mas que dificilmente criará embaraços nesse trâmite, talvez ainda mais bondades.
O paradoxo reside em ter um apoio tão concentrado em dois políticos alagoanos para uma medida de pequeno impacto na região Nordeste, onde apenas 12,1% da força de trabalho tem rendas na nova faixa de isenção, entre R$3 e R$5 mil.
Mas no mesmo dia 7 em que o senador Renan Calheiros, já escolhido relator, afirmava numa coletiva que faria tudo para que o PL não voltasse para a Câmara, o governo teve uma derrota parlamentar de amplo espectro na Câmara ao apostar na votação da Medida Provisória 1.303 dispondo sobre a tributação de aplicações financeiras.
O revés do dia 7 foi uma derrota política maiúscula – o placar foi 251 a 13 – que não se mede pelas previsões de arrecadação perdida. Não foram números impressionantes, pois era uma MP repleta de pequenas maldades que se resolveu votar em razão de presunção de que era grande o apoio parlamentar do governo. Não era.
Na verdade, o estrago era mais político do que propriamente fiscal. Quando as autoridades, lideradas pelo próprio presidente da República, falam em “sabotagem” é que a derrota foi dolorida. Na verdade, essas manifestações sugerem que o que estava em jogo na MP1.303 eram recursos para mais estímulos fiscais no ano da eleição.
Explique-se.
O déficit primário foi pior no primeiro ano de governo, quando chegou a 2,5% do PIB, mas caiu abaixo de 0,5% nas medições mais recentes. A deterioração das contas fiscais foi sustada, o que representa uma importante conquista: ao menos na perspectiva de 2025, o ano que precede o ano de eleição, não se repetiu a Nova Matriz Macroeconômica. É claro que não é a política fiscal que levará o Brasil de volta ao grau de investimento. Mas é o que é possível fazer nesse governo, ficando a dúvida sobre o que vai se passar em 2026.
O mix e a inconsistência
Não houve reunião do COPOM em outubro; a taxa Selic permaneceu onde estava, em 15% ao ano, com os agentes econômicos olhando à sua volta à procura das consequências.
Acredita-se que a Selic assim permanecerá por mais um tempo, e que um ciclo de baixa vai se iniciar, mas levando a Selic para 12,25% ao final de 2026. É o que sugerem os números do Boletim Focus, com as previsões de mais de uma centena de analistas que acompanham a política monetária.
Continua verdade que existe uma inconsistência entre as políticas monetária e fiscal – o crowding out – e que o país insiste em estímulos fiscais em uma economia em pleno emprego. O Banco Central faz o seu trabalho de definir a taxa de juros de modo a se atingir a meta para a inflação determinada pelo Conselho Monetário Nacional. A taxa de juros muito alta que o BCB tem praticado se apresenta como resultado dessa inconsistência.
Com a mão esquerda o governo faz política fiscal fortemente expansionista, e com a mão direta o mesmo governo fixa a meta para a inflação em 3% e obriga o BCB a uma política monetária ultra contracionista.
Houve mesmo uma dúvida sobre se o ministro da Fazenda não deveria rever a meta para a inflação, hipótese prontamente desmentida por Haddad.
O fato é que a soma dessas duas políticas inconsistentes é como simultaneamente pisar no acelerador e no freio, um desperdício de energia com pouco resultado.
Mas, felizmente, a inflação cedeu. Na verdade, as expetativas para a inflação já vinham cedendo, como se pode ver no gráfico, de tal sorte a aproximar as taxas esperadas para 2025 e 2026 do limite superior de tolerância para o IPCA (4,5%):

Essa convergência das expectativas – ou “redução da desancoragem”, no idioma coponês – tem ocorrido face à expectativa de desaquecimento da economia, uma tendência já perceptível, e cujas expressões mais contundentes deverão se apresentar nas próximas semanas.
Será uma “aterrissagem suave” se as expectativas convergirem para o centro da meta nas próximas safras do Boletim Focus, em resposta a uma economia menos aquecida, aos juros de 15% e ao dólar que se enfraquece.
Problema vai ser se o presidente pisar ainda mais fundo no acelerador fiscal, como é comum em tempos de eleição, o que impedirá o BCB de tirar o pé do freio. Será um problemão. Um “petroproblema”, para usar o superlativo do próprio presidente da República.
Texto original de Gustavo Franco, Sócio Fundador e Senior Advisor da Rio Bravo, originalmente publicado na Carta Estratégias Outubro de 2025.

